O
ser humano, em sua arrogância por ser o "animal racional", está
sempre orgulhoso de sua suposta propriedade de planejar, de dominar a natureza,
de controlar as coisas. Mas, se pararmos para observar o mundo ao redor,
veremos que pouquíssimas coisas estão realmente sob nosso controle. Não
controlamos doenças, catástrofes naturais, acidentes, crises econômicas.
Quantas vezes planejamos algo para certa data e nos frustramos por não ter dado
certo? Isso acontece a todo mundo. Não controlamos a criação. Qualquer um que
já tenha assistido a um telejornal sabe disso.
Só que o sentimento de não termos poder sobre os elementos é insuportável. Não conseguimos lidar com o fato de que podemos morrer a qualquer momento e criamos, sem que percebamos, os mais variados trambiques para provarmos o contrário. Vou citar exemplos. Em primeiro lugar, o misticismo. O misticismo (astrologia, bruxaria, crença em carma, magia, simpatias com santos, espiritualidade pentecostal etc.) é a forma mais fácil e colorida de jogar a outras coisas as nossas responsabilidades, nossos altos e baixos, perdas e vitórias. É muito agradável dizer que algo aconteceu a fulano por castigo devido a seus pecados. Isso liberta a psicologia da velhinha beata de pensar que o mesmo pode acontecer com ela, que vive "louvando a Deus".
A religião mais primitiva surgiu para "enganar" a morte. Percebemos que somos mortais e, para acalmar os "espíritos da natureza" (mais tarde chamados deuses), que não controlamos naturalmente, começaram-se a oferecer sacrifícios. Esta é a raiz e o tronco do paganismo: louvam-se os deuses para que o "adorador" obtenha boas chuvas, colheitas, e não sofra a ira dos espíritos. A Torá (Pentateuco) aceitou algumas das práticas do paganismo, segundo o filósofo Maimônides, porque o povo não conhecia outra forma de religião. As mentes das pessoas da época não eram capazes de absorver a verdade monoteísta assim da noite pra o dia. Assim, foram aceitas práticas como os sacrifícios, só que receberam novas regras, no caso, só poderiam ser oferecidos sacrifícios ao Senhor, e no local designado. Sugiro que o leitor, para mais informações sobre este tema, leia o artigo “Elementos pagãos” na Bíblia: um problema?
A Torá continuou com muitas práticas da região do Oriente Médio, mas deu-lhes novos significados, para afastar o coração do povo de seus antigos conceitos. As festas, por exemplo, ao invés de comemorações das colheitas, que era o sentido que tinham a princípio, passaram a celebrar a liberdade e feriados nacionais (Pêssah, Hanucá, Purim), a proteção de Deus (Sucôt), etc.
"Não
há nada de novo debaixo do sol", como diz o escritor do Eclesiastes. As
religiões populares hoje, em 2016 têm os mesmos elementos daquelas
antiquíssimas formas de paganismo que bajulavam os deuses à procura de
"bênçãos". Para justificarem o "vazio" ocasionado pela contemplação
das tragédias do mundo, as pessoas recorrem à Bíblia, distorcendo vários
versículos para prometerem aos outros e principalmente a si mesmos que tudo
dará certo, sob suposta garantia divina. Neste artigo, analisaremos alguns
textos que os "positivos" postam na internet todos os dias, repetem
como mantra e gritam nas igrejas. Todos eles foram distorcidos e tirados do
contexto, para afirmar que as pessoas justas têm o “direito” de não ficarem
doentes, não serem pobres e não sofrerem.
Em nenhum lugar da Bíblia está escrito
que a pessoa que vive com Deus não pode sofrer nem morrer miseravelmente. Muito
pelo contrário, temos vários relatos de profetas, homens santos que sofreram,
foram abandonados por todo o seu povo, foram celibatários, absolutamente
sozinhos, deprimidos, desejaram a morte (Elias, Jeremias, Jonas e outros).
José, exemplo clássico da superação e do drama familiar, passou uns vinte anos
de grandes sofrimentos antes de chegar a ser governador do Egito. Mas é fácil
pular com os olhos os vinte anos e chegar à coroa, não é mesmo? É muito fácil
ver os milagres que ocorreram ao povo hebreu no deserto, mas quem pensa que
eles sofreram durante quarenta anos? Ora, não está escrito que eles não
sofreram!
Alguns textos que parecem prometer bênçãos
a) Êxodo 15, 26
Se vocês derem atenção ao Senhor, ao seu Deus e fizerem o que ele aprova, se derem ouvidos aos seus mandamentos e obedecerem a todos os seus decretos, não trarei sobre vocês nenhuma das doenças que eu trouxe sobre os egípcios, pois eu sou o Senhor que os cura.
O texto compara dois povos: o povo
judeu, que havia acabado de sair do Egito (Êx 12, 41) e os egípcios, que haviam
sofrido as famosas dez pragas (7, 17 em diante). O povo reclamou de sede e
Moisés milagrosamente tornou potáveis as águas amargas de Mará (15, 23 ss).
Após o milagre, Moisés adverte ao povo que se todos cumprissem as leis, as
calamidades que ocorreram com os egípcios, entre elas não poder beber água (na
primeira praga do Egito, as águas tornaram-se como sangue), não ocorreriam com
o povo hebreu. De que mandamentos o versículo está falando? Dos mandamentos da
Torá, a Lei de Moisés. Por que os líderes dizem que a Lei foi abolida, mas as
promessas para quem guardam esta Lei não foram? O versículo não promete
saúde eterna para as pessoas que temem a Deus. Todas as pessoas adoecem, cedo
ou tarde.
b) Deuteronômio 28
Este texto promete bênçãos
dulcíssimas ao povo judeu se ele cumprisse, COLETIVAMENTE, a Lei de Moisés.
Veja: aquilo foi dito ao povo, não a indivíduos! Se fosse a
indivíduos, os exemplos de fiéis sofredores já citados seriam inaceitáveis!
Quando o povo era exilado em consequência de seus erros, até os justos como
Jeremias e Daniel sofriam também! Mas não é só isso: o famoso capítulo do
"bendito serás", tem apenas 14 versículos de bênçãos para o povo que
cumpre os mandamentos , e surpreendentes 55 com as maldições mais pesadas que
uma pessoa pode imaginar, para quem não cumpre!!! As mesmas pessoas que dizem
que "texto sem contexto é heresia" pregam que todo mundo será
abençoado, porque Dt 28 afirma! É claro! Falando a língua do povo: "quem
diabo quer saber de coisas ruins?" Muito melhor é se iludir, enganar o
povo e fingir que a coisa ruim nem existe! Mas ela existe:
Entretanto, se vocês não obedecerem ao Senhor, ao seu Deus, e não seguirem cuidadosamente todos os seus mandamentos e decretos que hoje lhes dou, todas estas maldições cairão sobre vocês e os atingirão: Vocês serão amaldiçoados na cidade e serão amaldiçoados no campo. A sua cesta e a sua amassadeira serão amaldiçoadas. Os filhos do seu ventre serão amaldiçoados, como também as colheitas da sua terra, os bezerros e os cordeiros dos seus rebanhos. Vocês serão amaldiçoados em tudo o que fizerem. (Dt 28, 15- 19)
Vejam que os primeiros versículos do
capítulo falam claramente que as bênçãos eram condicionadas ao povo,
coletivamente, se ele cumprisse a Lei:
"Se vocês obedecerem fielmente ao Senhor, ao seu Deus, e seguirem cuidadosamente todos os seus mandamentos que hoje lhes dou, o Senhor, o seu Deus, os colocará muito acima de todas as nações da terra. Todas estas bênçãos virão sobre vocês e os acompanharão, se vocês obedecerem ao Senhor, ao seu Deus" (Dt 28, 1-2)
Perceba que o povo é aqui comparado às
demais nações. O texto não fala de indivíduos, fala da nação inteira, se
seguisse os mandamentos da Lei Mosaica. Veja também, a esse respeito, Dt 4,1,
falando sobre a mesma ideia.
c) Salmo 37, 25
Já fui jovem e agora sou velho, mas nunca vi o justo desamparado, nem
seus filhos mendigando o pão.
O livro de Salmos não é uma fala de Deus para o povo. É uma coleção de
poesias hebraicas, muitas delas escritas pelo Rei David. O rei expressa seus
sentimentos através de sua habilidade com a composição, colocando "no
papel" seus sofrimentos, devido aos momentos de perseguição por Saul ou
outros inimigos (Salmo 57), seu amor por Jerusalém (137), seu sentimento
de culpa pelos seus pecados (51), seu sentimento de ter alcançado graça aos
olhos de Deus etc.
Assim sendo, não vamos distorcer os textos! O autor está dizendo que
nunca viu um justo desamparado. Nem ao menos significa que os justos pobres e
sofredores não existem! Ora! Muitos justos foram e são pobres! Veja o que a Lei
de Moisés diz:
Sempre haverá pobres na terra. Portanto, eu lhe ordeno que abra o
coração para o seu irmão israelita, tanto para o pobre como para o necessitado
de sua terra. (Deuteronômio 15, 11)
Nunca vai deixar de haver pobreza. A pobreza é um resultado da ganância e
perversidade humanas, da vida do homem como ser social e de circunstâncias
externas! Como assim temos o “direito” de sermos todos ricos?
d) Salmo 121
(...) sim, o protetor de Israel não dormirá, ele está sempre alerta! O Senhor é o seu protetor; como sombra que o protege, ele está à sua direita. De dia o sol não o ferirá, nem a lua, de noite. O Senhor o protegerá de todo o mal, protegerá a sua vida. O Senhor protegerá a sua saída e a sua chegada, desde agora e para sempre.
Os salmos são poesia. São opinião do autor, beleza vinda de sua mente e
suas mãos. O salmo 121 representa a fraqueza do ser humano diante dos
acontecimentos e sua espera em um Deus Onipotente que PODE atuar na história a
favor de seu povo (não estamos negando isso neste artigo!). Quando eu digo a
uma pessoa “Deus o abençoe”, estou expressando uma vontade sincera de que
aquela pessoa receba coisas boas em sua vida. Mas isso, infelizmente, não
significa que a bênção está nos planos de Deus!
Pode ser que SEJA A VONTADE DE
DEUS nos dar uma vida agradável, assim como pode ser da vontade dele fazer com
que um ímpio tenha uma vida de riquezas NESTE MUNDO ¹. Quem somos nós para
discutir os planos de Deus? Lemos que José passou por sofrimentos para que no
futuro se tornasse aquele que sustentaria o povo de Israel, assim como lemos
(Nm 42) que Deus poupou o povo moabita, que tinha acabado de causar um pecado
horroroso, resultando em mortes para o povo de Israel, ao mesmo tempo que outro
povo, o midianita, deveria receber vingança. Por quê? Temos uma boa explicação
da parte dos nossos exegetas: do povo moabita viria Rute, a famosa convertida
ao judaísmo que se tornaria ancestral do rei Davi e, portanto, de todos os reis
de Judá! Deus, ao contrário de nós, pensa longe, vê a história inteira, e sabe
o que é melhor para nós!
e) Isaías 54
(...) Alargue o lugar de sua tenda, estenda bem as cortinas de sua tenda, não o impeça; estique suas cordas, firme suas estacas. Pois você se estenderá para a direita e para a esquerda; seus descendentes desapossarão nações e se instalarão em suas cidades abandonadas. (...)
Escolhi esse versículo para simbolizar todos os versículos dos profetas (Isaías, Jeremias, Ezequiel e os doze profetas menores) usados para “prometer bênçãos” para as pessoas. Qual era a função de um profeta? Sabemos que o povo de Israel vivia altos e baixos. Pelos livros históricos da Bíblia, percebemos que houve reis excelentes como Ezequias (II Reis 18, 5ss), que acabou com práticas idolátricas e “pôs sua confiança no Senhor”, e também reis escandalosamente maus, como Manassés (II Reis 21, 2ss), que “fez passar seu filho pelo fogo”. As políticas desses reis influenciavam diretamente na conduta do povo, que lhes obedecia diretamente. Era na época desses reis que viviam os profetas. Isaías, por exemplo, foi contemporâneo de reis como Ozias, Iotâm, Acaz e Ezequias (Is 1, 1).
Os profetas serviam para reprovar as práticas erradas do povo e das
elites de Judá e Israel, e também para anunciar a bênção divina, em
consequência de eles seguirem ou não as leis de Deus. Lemos, por exemplo, sobre
o profeta Jonas, que foi enviado a Nínive com o seguinte comando: “Levanta-te,
vai à grande cidade de Nínive, e clama contra ela, porque a sua malícia subiu
até à minha presença.” (Jonas 1, 2). Jonas anunciaria a perdição para a cidade
de Nínive caso ela não se arrependesse, o que aconteceu, fazendo com que o povo
fosse perdoado (capítulo 3). Esses eram os profetas! Eles enfrentavam os reis,
falavam aos povos as mensagens do Senhor. No capítulo 54, o profeta Isaías
está falando para a cidade de Jerusalém², comparada a uma mulher estéril, sem
vida, porque a cidade estava desolada.
Os profetas traziam uma mensagem clara, real, que as pessoas receberiam
EM SUAS ÉPOCAS. Podemos sim usar essas mensagens para fortalecimento e edificação
de alguém, mas isso está sendo usado COMO REGRA, como promessa de riqueza e
bênção, sem ao menos citar o contexto histórico em que o texto se situava! Isso é errado! Não era isso que o texto estava falando! Amigo, estão
SELECIONANDO os textos para passarem para você! Se a regra de “pegar um texto
dos profetas” e aplicar aos dias de hoje para QUALQUER CIRCUNSTÂNCIA é válida,
então, por favor, explique-me porque pegar textos positivos está tudo bem, e
textos como o seguinte, do mesmo profeta Isaías, são ignorados:
“Diz ainda mais o Senhor: Porquanto as filhas de Sião se exaltam, e andam com o pescoço erguido, lançando olhares impudentes; e quando andam, caminham afetadamente, fazendo um tilintar com os seus pés; Portanto o Senhor fará tinhoso o alto da cabeça das filhas de Sião!” (Is 3, 16 – 17) “E será que em lugar de perfume haverá mau cheiro; e por cinto uma corda; e em lugar de encrespadura de cabelos, calvície; e em lugar de veste luxuosa, pano de saco; e queimadura em lugar de formosura. Teus homens cairão à espada e teus poderosos na peleja. E as suas portas gemerão e prantearão; e ela, desolada, se assentará no chão.” (Is 3, 24-26)
Ninguém quer saber desses versículos, não é verdade?
Não é nossa intenção aqui falar de TODOS os versículos usados para
prometer positividade, pois isso resultaria em um artigo infinito. Expusemos textos centrais usados
para essa finalidade, nos profetas, nos salmos, e no pentateuco. Todos os
demais textos, sem exceção, devem passar pelas mesmas regras: em que época
foram escritos? Qual o gênero literário desse texto? Para quem o autor
escreveu? Qual era a situação da pessoa/povo para quem o autor escreveu?

Conclusão: o problema da “positividade”
Além de ser falsa, como espero ter provado nesse artigo, a positividade
baseada no mau uso de textos bíblicos está associada a um forte problema:
esperar por coisas do céu acreditando estar amparado por promessas pode fazer
com que você desvie o seu pensamento da realidade do dia a dia!
Os poderosos adoram a positividade do povo, porque ela mantém este
totalmente cego, sem ver as crises, sem ver os problemas e sempre esperando
pelo melhor, com amuletos, com repetição do nome de Deus e com pensamento
positivo! Uma pessoa “positivinha” nunca reclama de sua sorte, nunca vê as
injustiças sociais, nunca vê os abusos de poder, porque enxerga o mundo apenas
com olhos de "vencer", de "Deus" e de "bons
sentimentos". Quantas pessoas já postam na internet momentos após acordar
sua primeira coisinha positiva do dia? Desejos bons, boas sementes...? acordemos
para a vida! Há poderosos detendo direitos de vida e morte sobre o povo! Há
leis injustas! Há políticos roubando milhões! Por tudo que compramos, pagamos
altos impostos e não recebemos nada em troca! Enquanto isso, uma enorme massa,
ao invés de entrar na ação política, de se informar, pelo menos, fica postando
Maria e Jesus na internet e postando amém em fotos de criancinhas deficientes!
Percebam que a positividade, a crença PAGÃ em direitos a bênçãos faz
muito mais mal do que bem, pois nos mantém alienados deste mundo e acomodados,
atribuindo sempre a coisas sobrenaturais coisas que estão na esfera dos seres
humanos, da nossa ação e responsabilidade! Vamos concluir com um versículo que
se situa no contexto da travessia do mar, quando os israelitas rogaram a Deus
para que agisse em favor deles. Se você foi impactado por este artigo, peço que passe adiante.
“Então disse o Senhor a Moisés: Por que clamas a mim? Dize aos filhos de
Israel que marchem” (Êxodo 14, 15).
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¹ Nossa real esperança deve ser no pós morte, na recompensa que nosso Deus nos dará (ver Daniel 12, 2). Muitos ímpios parecem ser felizes aqui na terra, e muitos justos não têm suas riquezas materiais. Devemos sim buscar uma vida feliz aqui, e podemos pedir a Deus por proteção, não há nada de errado nisso. Mas quem sabe os melhores caminhos para nós é o Criador!
² Segundo o comentário de Rachi sobre o primeiro versículo desse capítulo.
² Segundo o comentário de Rachi sobre o primeiro versículo desse capítulo.
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