“Não deveria haver religiões,
igrejas, formas diferentes de ver Deus, já que só existe uma Bíblia!”. Quem
nunca ouviu essas palavras? Talvez o próprio leitor já tenha pensado nessa
afirmação, ao se deparar com a realidade das brigas entre as religiões.
Este artigo tem como objetivo estudar a visão que
diferentes religiões têm em relação à Bíblia, para concluir se há alguma
religião que segue de fato a Bíblia como única coisa que tem autoridade para a
fé e prática do crente. Na primeira parte, citaremos brevemente as principais
religiões que dizem crer na Bíblia ou parte dela (islã, catolicismo, judaísmo e
protestantismo), e explicaremos qual é a visão de Bíblia que cada uma dessas
religiões tem. Em seguida, nós analisaremos de modo independente de religiões
se a Bíblia possui ou não lacunas e ambiguidades que precisem ser resolvidas
pelo homem. Veremos também o que a
Bíblia diz de si mesma e de seu autor. A Bíblia diz que ela é o “manual para
todos os assuntos”? Ela diz que ela é a única coisa que tem a autoridade em fé
e prática? A Bíblia diz que seu autor é Deus? Finalmente, vamos responder a
pergunta que dá título ao artigo, ou seja, se existe uma religião ou sistema de
crenças que siga plena e unicamente os ensinamentos bíblicos.
O que as
principais “religiões bíblicas” dizem da Bíblia?
Para saber qual religião segue
realmente a Bíblia, podemos tomar um atalho, para ver se as grandes religiões
têm a pretensão de seguir plena e unicamente os ensinamentos bíblicos. Ou seja:
quem diz que segue a Bíblia?
Gostaria de abrir aqui um breve
parêntese: a palavra “religião” tem sido “demonizada” por muitas pessoas.
Antigamente, religião significava algo como “sistema de crenças” ou “sistema de
se louvar um Deus”; hoje em dia, no entanto, principalmente no meio cristão
evangélico pentecostal, as pessoas acham que religião é algo ruim, porque é
humano e “na verdade o que se deve seguir é a Bíblia”. Porém, na língua
portuguesa, independente do que fulano ache ou pense, “religião” tem mais ou
menos os significados que foram apresentados acima. Basta consultar dicionários
para conferir. Ou seja, as igrejas pentecostais são religiões também, porque
são sistemas de crenças em uma divindade e de rituais para cultuar essa
divindade.
As religiões analisadas serão:
judaísmo, cristianismo católico, islã e cristianismo protestante. É verdade que
existem outras religiões que dizem basear seus ensinamentos, ou parte deles, na
Bíblia, mas escolhemos apenas essas quatro pelo valor histórico/cultural delas,
além de serem, na opinião do autor deste texto, as que mais citam textos
escritos, entre eles a Bíblia, como autoridades para crença e comportamento.
a) O Judaísmo – O judaísmo
é a primeira “religião da Bíblia”. A Bíblia (Hebraica) foi escrita por judeus,
para judeus, sobre judeus. Quem canonizou o “Antigo Testamento” foi o povo
judeu, foram os rabinos. Alguns livros sempre foram tidos como sagrados, o que
é sobretudo o caso da Torá (cinco livros de Moisés). Os livros dos profetas
também sempre tiveram mais ou menos uma aceitação unânime na religião judaica.
A canonização definitiva de alguns livros da seção “escritos”, no entanto, foi
bastante discutida, sendo que alguns rabinos criticaram bastante a colocação de
livros como Cântico dos Cânticos, Eclesiastes e Ester na Bíblia¹. Nunca caiu do
céu uma lista dos livros da Bíblia. A decisão de quais livros são sagrados e
quais não são foi feita por seres humanos crentes naquele material. Existem
livros muito antigos que não entraram no cânon da Bíblia, como os livros dos
Macabeus e muitos outros, chamados “apócrifos”, termo de origem grega que
significa “ocultos”. Esses livros, apesar de não estarem na Bíblia, são
importantes para o conhecimento da história do povo judeu. Nos Macabeus, por
exemplo, lemos sobre a vitória dos hebreus sobre o opressor império grego, que
perseguiu os fiéis da Lei de Moisés. Essa vitória militar/cultural originou a
celebração chamada “Hanucá”, “festa da dedicação” ou “festa das luzes”,
uma importante celebração anual judaica que é considerada com o mesmo status da
festa de Purim, citada no livro de Ester, da Bíblia.
Para o judaísmo tradicional, o
livro que tem autoridade para a prática diária dos fiéis é a Torá, fonte de 613
mandamentos que devem ser obedecidos, e que possuem origem divina. Os Profetas,
Escritos e centenas de outros livros de todas as épocas são considerados
importantes para o judaísmo, mas nenhum tem o status dos cinco primeiros livros
da Bíblia. Isso acontece porque, de acordo com a fé judaica como explicada por
Moisés Maimônides (1135 -1204), Moisés é o profeta superior. Não existe profeta
como Moisés, nem existiu antes dele, nem depois. A profecia dos demais
profetas, portanto, deve ser medida pela Torá. Os demais livros da Bíblia
Hebraica não possuem o mesmo valor para a fé e prática que a Torá². A visão que
o judaísmo tem da Bíblia é, portanto, diferente da que tem o cristianismo. É
verdade que, de acordo com os princípios da fé judaica, a Torá é de origem divina³.
Maimônides sustentava que até mesmo o texto da Torá é de origem divina, nenhuma
passagem sendo inferior às outras. O mesmo autor jamais disse a mesma coisa
sobre as outras duas partes do Tanakh (Profetas e Escritos).
Outra crença estranha ao judaísmo
tradicional é: “a única fonte de autoridade religiosa é a Bíblia”. Apesar de a
Torá ter o valor exposto acima, é fácil perceber que há lacunas, ambiguidades e
problemas de tradução na Torá, de modo que as informações necessárias para
decodificar e explicar os mandamentos são
também consideradas sagradas, e chamadas “Torá Oral”. O judaísmo ensina que a Torá Escrita possui apenas
parte da Torá, sendo a Torá Oral codificada posteriormente em livros como a
Michná e o Talmud. Esses livros não são considerados como tendo texto de origem
divina, mas seu conteúdo é importante pois os rabinos teriam a autoridade para
explicar questões da Torá Escrita. Alguns exemplos de lacunas da Torá Escrita: Somos
ordenados a considerar certo mês como o primeiro do ano (Ex 12, 2), mas não há
nada escrito sobre “o que é um mês” ou como funciona o calendário. Somos
proibidos de fazer “obras”/trabalho no sétimo dia (Ex 20, 10), mas não está na
Torá escrita quais são essas obras. Muitíssimos outros argumentos são usados
para provar a existência de uma Torá Oral.
A própria Torá Escrita institui
um tribunal humano para julgar dentro das leis, ordenando que o povo obedeça a
decisão desse tribunal (Dt 16, 18; 17, 8-11). Assim, em casos de dúvidas ou
necessidade de explicação da Lei Escrita, considera-se lícito que o tribunal
rabínico devidamente credenciado decida como as pessoas devem se
comportar. Essas decisões não são
consideradas “acréscimos” à Torá.
A posição do judaísmo tradicional, portanto é:
a Torá (cinco primeiros livros da Bíblia) tem autoridade e é de origem divina.
Os demais livros da Bíblia (Profetas e Escritos) são importantes, porque falam
sobre a Torá. É impossível seguir apenas a Torá Escrita, pois ela contém
lacunas e deixa o praticante na dúvida. É necessário seguir uma tradição fora da Torá Escrita para entender a
forma verdadeira de obedecer a Torá. Essa tradição é chamada “Torá Oral” e está
em outros livros.
Existem ramificações judaicas
minoritárias, como os caraítas, que pregam que as tradições dos rabinos não
devem ser obedecidas, toda a autoridade pertencendo à Bíblia. Esses movimentos,
no entanto, apesar de possuírem casas de oração no mundo todo, não têm grande
força no mundo judaico e são considerados pelos judeus ortodoxos como grupos
“de fora”.
b) O Islã – A
religião islâmica reconhece a Bíblia como fonte de histórias e ensinamentos
verdadeiros, apesar de considerar que a revelação definitiva não é a Bíblia nem
o Novo Testamento, e sim o Alcorão, texto revelado ao profeta Maomé (Muhâmad),
de acordo com essa religião. Muitos personagens do Antigo e do Novo Testamentos
aparecem no Alcorão, como Noé, Abraão, Isaac, Ismael, Moisés, João, José, Maria
e Jesus. Apesar disso, de acordo com certo escritor⁴ sobre o islã:
Para o Alcorão – que é a palavra de Deus – judeus e cristãos desnaturaram a Revelação. Por esse motivo, Maomé é “o Selo dos profetas”, enviado para purificar a Revelação até o final dos tempos
Assim,
apesar de aceitar as mensagens bíblicas, o islã defende que judeus e cristãos
corromperam o ensinamento verdadeiro da Revelação (inclusive adulteraram os
textos), que foi resgatado no livro que, esse sim, é o presente supremo para a
humanidade, o Alcorão (ou simplesmente Corão. O nome significa “a recitação”).
Apesar de venerar o Alcorão, os muçulmanos não dizem que este livro é
autoexplicativo e suficiente para a prática do fiel. Portanto, além do Alcorão,
os muçulmanos recorrem à “sunna” (“tradição de Maomé”) e à “fiqh” ou
jurisprudência⁵. Como este artigo trata apenas da Bíblia, uma discussão a respeito da
veracidade do Islã está fora dos nossos interesses agora. Passemos aos
cristianismos.
c) O Cristianismo Católico – Esta informação pode surpreender a muitos, mas de
acordo com a doutrina católica, a Bíblia (somada ao Novo Testamento) não é a
única coisa que tem autoridade sobre a vida cristã. A Bíblia não engloba todo o
plano de Deus para a humanidade. Para essa religião, a Bíblia é o registro
escrito, apesar de revelado, de uma época da Igreja, uma época em que a Igreja
já estava bem estabelecida, com apóstolos e pessoas que tinham o conhecimento
de como os textos devem ser interpretados. Há o texto da Bíblia e a Igreja viva
que o interpreta e vive de acordo com ele. Assim sendo, a Igreja Católica
reconhece a tradição e o chamado Magistério da Igreja (instituição com
autoridade transmitida por Jesus) como os únicos meios corretos de se
interpretar a Bíblia, sendo que outras formas de entender o livro não são
consideradas corretas. Os seguintes textos pertencem ao Catecismo da Igreja
Católica ⁶:
80. «A Tradição sagrada e a Sagrada Escritura estão intimamente unidas e compenetradas entre si. Com efeito, derivando ambas da mesma fonte divina, fazem como que uma coisa só e tendem ao mesmo fim» (...).
81. «A Sagrada Escritura é a Palavra de Deus enquanto foi escrita por inspiração do Espírito divino».«A sagrada Tradição, por sua vez, conserva a Palavra de Deus, confiada por Cristo Senhor e pelo Espírito Santo aos Apóstolos, e transmite-a integralmente aos seus sucessores, para que eles, com a luz do Espírito da verdade, fielmente a conservem, exponham e difundam na sua pregação» (47).82. Daí resulta que a Igreja, a quem está confiada a transmissão e interpretação da Revelação, «não tira só da Sagrada Escritura a sua certeza a respeito de todas as coisas reveladas. Por isso, ambas devem ser recebidas e veneradas com igual espírito de piedade e reverência» (48).85. «O encargo de interpretar autenticamente a Palavra de Deus, escrita ou contida na Tradição, foi confiado só ao Magistério vivo da Igreja, cuja autoridade é exercida em nome de Jesus Cristo (51), isto é, aos bispos em comunhão com o sucessor de Pedro, o bispo de Roma.86. «Todavia, este Magistério não está acima da Palavra de Deus, mas sim ao seu serviço, ensinando apenas o que foi transmitido, enquanto, por mandato divino e com a assistência do Espírito Santo, a ouve piamente, a guarda religiosamente e a expõe fielmente, haurindo deste depósito único da fé tudo quanto propõe à fé como divinamente revelado» (52).88. O Magistério da Igreja faz pleno uso da autoridade que recebeu de Cristo quando define dogmas, isto é, quando propõe, dum modo que obriga o povo cristão a uma adesão irrevogável de fé, verdades contidas na Revelação divina ou quando propõe, de modo definitivo, verdades que tenham com elas um nexo necessário.
Sabemos,
portanto, pelas palavras do documento acima, que, do ponto de vista católico, o
fiel em particular, estudando sua Bíblia traduzida, não necessariamente chegará
ao conhecimento das verdades bíblicas e vai interpretar tudo errado se não
estiver conectado com a fonte viva da Igreja, que tem autoridade para interpretar
a Bíblia. Assim como o Judaísmo, o Catolicismo entende que as Escrituras contêm
lacunas, ambiguidades e talvez até problemas de tradução. Ambas as religiões
confiam nas tradições, nas opiniões das autoridades religiosas, dos grandes
filósofos, doutores e sábios do passado, nas pessoas que estavam mais próximas
às que escreveram os textos. Ambas se consideram religiões “organizadas”, bem
fundamentadas, firmes, que não estão baseadas na intuição da leitura particular
de um leigo, supostamente inspirado ou coisa parecida, e sim em explicações
feitas há milhares de anos por autoridades.
Dito
isso, não é possível que se considere normal que tantos protestantes vivam
revoltados porque os católicos “leem versículos que proíbem a idolatria e não
se sensibilizam”, já que não bastam os textos, há também a interpretação deles! A Igreja Católica Romana não
ensina que você deve ler a Bíblia e entendê-la individualmente! Ora, o fato de
a Igreja Católica estar aí há milhares de anos parece sugerir que pelo menos
algum padre em todo esse período leu os textos contra “procissões” e explicou
de uma forma diferente! Parece óbvio, não? Não
é muito pretensioso pensar que padres nunca leram a Bíblia? Por outro lado,
também não pode ser normal que tantos católicos se deparem com o discurso
protestante e não tenham conhecimento de fontes como o Catecismo, citado acima,
para dar-lhes a resposta de sua própria fé. É uma falha educacional dos
religiosos.
d) O Cristianismo Protestante – As atuais igrejas protestantes e evangélicas são
frutos históricos do movimento chamado Reforma Protestante. Na Idade Média, a
Igreja Católica Romana exercia um poder imenso sobre as vidas das pessoas no
mundo ocidental. Muitas coisas, desde o dia a dia dos camponeses até questões
políticas internacionais, eram orientadas pela Igreja. Como vimos acima, a
Igreja Católica afirma ter autoridade dada por Cristo para aplicar as leis
cristãs. Essa forma de ver as coisas baseia-se em versículos como Mt 16, 18-19,
em que, para o católico, Jesus dá a Pedro (“primeiro papa”) autoridade
espiritual sobre os cristãos. Como tudo funcionava organizado hierarquicamente,
havia uma enorme separação entre o clero e os leigos. Muitos destes últimos,
por não terem uma educação religiosa e secular adequada, não conheciam as
escrituras e muitas vezes nem entendiam direito as doutrinas eclesiásticas,
desenvolvendo superstições que muitas vezes também eram ensinadas por ministros
pouco instruídos. A Igreja foi usando cada vez mais sua suposta autoridade para
ordenar como os cristãos deveriam se portar, instituindo, em seus concílios, novas
crenças e práticas. Algumas pessoas de educação religiosa começaram a ver que
várias dessas crenças e práticas não pareciam harmoniosas com o que
aparentemente os evangelhos ensinam. Coisas como batismo infantil, vendas de
indulgências e relíquias, separação entre o clero e o povo, ignorância das
Escrituras (mantidas em latim, língua dos intelectuais) e veneração exagerada
dos santos pareciam tão distantes do evangelho! Homens como John Wycliffe
(1328-1384), John Huss (1369-1415) e Martinho Lutero (1483 - 1546), em lugares
e épocas diferentes, questionaram práticas católicas, baseados no Evangelho.
Todos esses questionadores e seus seguidores foram perseguidos, muitos chegaram
a ser executados ou mortos em massacres. A Reforma Protestante (movimento de
contestação e reformulação dos dogmas cristãos) não foi obra de um único homem,
e sim um produto histórico de diversos fatores religiosos, sociais e políticos.
É muito importante falar sobre a
história das religiões protestantes, porque muitos dos atuais evangélicos
desconhecem totalmente essa história, que é tão importante para eles! Mas falar,
em uma página ou duas, de todos esses homens e seus feitos e das questões
sociais e políticas que levaram à Reforma não é possível. É necessário que outros textos sejam produzidos para
esclarecer mais às massas o que foi a Reforma, quais eram as grandes diferenças
entre o que os reformadores pregavam e a doutrina católica e também as
diferenças entre aqueles e os atuais evangélicos. As crenças de muitos desses reformadores
não eram iguais ao que se prega hoje nas religiões evangélicas!
Nesta breve síntese, elegemos,
por questão de espaço, o reformador Martinho Lutero para comentarmos, muito
brevemente, quais foram suas principais obras e como contribuiu para o
rompimento com o catolicismo romano. Lutero era filho de um alemão rico – que
queria que o filho fosse advogado – e teve uma boa educação, alcançando o grau
de bacharel em Artes e o de mestre em Artes. Movido por seus conflitos
interiores e, segundo dizem vários livros, após fazer uma promessa a Santa Ana
dizendo que seria monge caso escapasse de uma grande tempestade com raios,
entrou para um convento de agostinianos. Martinho Lutero sempre foi marcado por
um grande apreço pelas escrituras e teve amigos sinceros e devotos dentro da religião
católica. Tornou-se padre em 1507. Muitos dizem que os conflitos morais de
Lutero se acentuaram enquanto ele servia como sacerdote, e que ele não se
sentia bem ao celebrar a missa. Sentia-se indigno. Na área dos estudos, porém,
ele era um sucesso. Recebeu o título de bacharel em Teologia e foi enviado a
Roma para tratar de interesses de sua ordem. Na capital da Cristandade, em
1510, Lutero se surpreendeu e ficou chocado com a visão da corrupção e desleixo
de muitos membros do clero e dos leigos, que usavam de tudo quanto era
artifício para não fazerem penitência (contrição e arrependimento), usando como
desculpa a facilidade das relíquias, missas e indulgências compradas de
religiosos, que asseguravam o perdão de pecados nesta vida e na vida após a
morte!
Além de promover uma clara
inversão de valores, é necessário explicar que o “comércio da fé” tinha uma
implicação desfavorável para a nação alemã, ao mesmo tempo que enriquecia Roma:
indulgências também se vendiam na Alemanha, mas o dinheiro, ou grande parte
dele, ia para Roma, sobretudo para ser usado na reforma da basílica de São
Pedro. Os políticos alemães, todo o povo e o próprio Lutero eram conscientes
disso e reclamavam dessa exploração excessiva do povo cristão. Havia uma parte do
povo que veria também no que futuramente seriam as reivindicações teológicas de
Lutero uma mudança de vida, após a qual seria liberta não somente da religião
católica como também da opressão de uma elite representada por pessoas que
enriqueciam através da religião.
As plenamente conhecidas 95 teses
vieram a ser publicadas em 1517. Lutero, nesta época, não tinha a intenção de
dividir a Igreja. Ele queria tão somente debater, enquanto teólogo, a validade,
para o catolicismo, da doutrina das indulgências como eficazes para perdoar
pecados após a morte! A reação católica, porém, não foi tão amigável. Lutero
foi chamado a comparecer em Roma. Usando da proteção política de Frederico, o
Sábio, Lutero conseguiu fazer com que fosse ouvido em território alemão. Após
diversos debates, audições e controvérsias, as ideias luteranas foram
finalmente declaradas heréticas em 1520 por bula papal. Martinho Lutero queimou
publicamente, neste mesmo ano, o documento. É o início de uma nova era para o
cristianismo.
Na obra “do Cativeiro Babilônico
da Igreja”, publicada também em 1520, Lutero explica suas discordâncias
teológicas com os fundamentos da doutrina católica dos sacramentos. A Igreja
Católica ensina que existem sete sacramentos. Lutero pregou que só podem ser
reconhecidos dois sacramentos através das escrituras: o batismo e a eucaristia.
Podemos observar a partir dessa redução que Lutero não considerava as decisões
que a Igreja tomava com base na tradição e nos chamados concílios como tendo o
mesmo valor que as Escrituras. Para Lutero, não se pode colocar outra coisa no
mesmo nível de autoridade religiosa para o cristão que a Bíblia.
Duas outras coisas precisam ser
ditas a respeito da visão luterana sobre o Livro Sagrado: Lutero considerava
que existem níveis de autoridade dentro do Novo Testamento. Em “o Cativeiro
Babilônico da Igreja”, ele afirma que o autor da carta de Tiago “(...) ainda
que fosse o apóstolo Tiago, diria que não é lícito que o apóstolo institua um
Sacramento por sua autoridade (...), pois isso cabe somente a Cristo.” ⁷. Não há dúvida sobre o quanto isso pode soar estranho para o evangélico
que afirma que a Bíblia inteira, de capa a capa, é o livro da autoridade! O
líder protestante também citou livros apócrifos. Eclesiástico, por exemplo.
Finalmente, Lutero jamais rejeitou a ideia de tradições, enquanto práticas
“opcionais”, mas salutares. Na mesma obra que estamos citando, o autor
reconheceu como válidas e elogia várias tradições católicas! Lutero não considerava
obrigatória a submersão na água no momento do batismo (idem, p. 68), julgava
útil e necessária a confissão, assim como praticada no catolicismo (idem, p.
82) e não considerava correto abolir a ordenação de religiosos (idem, p. 101).
Em síntese, citando as palavras do autor (idem p. 92):
Devemos discernir muito bem entre as coisas que foram dadas por Deus nas Sagradas Escrituras e aquelas que foram inventadas por homens na Igreja, qualquer que seja a santidade e a doutrina pela qual se destacam.
Hoje, faltando um ano para se
completar meio milênio da publicação das 95 teses de Lutero, temos um número
imenso de denominações chamadas evangélicas, protestantes ou reformadas,
espalhadas por todos os cantos do planeta. Após homens como Lutero e Calvino
darem os primeiros passos, o protestantismo foi se dividindo cada vez mais,
pois discordâncias de pensamento foram surgindo. Isso acontece porque as
denominações evangélicas (e também as dissidentes que rejeitaram o rótulo)
afirmam “seguir a Bíblia”, “seguir apenas a Bíblia”. Quando uma pessoa do clero
de uma igreja evangélica “descobre” na Bíblia que as doutrinas da denominação
não estão de acordo com diversos versículos unidos entre si, ela sai e se une a
outra denominação, ou funda uma nova igreja, essa sim, “totalmente bíblica”.
Muitos amigos evangélicos que o leitor possa ter diriam, em uma discussão a
respeito de teologia, que não seguem religião nenhuma, seguem apenas as
Escrituras como o “único manual de fé e prática”.
Agora, após essa pequena viagem pelas principais
religiões “bíblicas” do mundo, vamos tentar discutir o assunto de modo menos parcial
possível. Será que a afirmação de que “é possível crer só na Bíblia” faz
sentido? A Bíblia é o manual para tudo? É a única fonte? O que a Bíblia diz de
si mesma?
A Bíblia
é o manual que fala de todos os assuntos?
É verdade que a Bíblia trata de uma imensa gama de
temas diferentes. Desde espiritualidade, história, dia a dia, dinheiro,
casamento, tudo isso está dentro das páginas desse grande volume que é a
Escritura. Mas todos os assuntos, as respostas para todas as perguntas que o
fiel possa fazer, estão na Bíblia?
Na verdade, existem temas de que a Bíblia não fala
quase nada ou nada, como por exemplo a vida após a morte, ciência, política e
artes. No “Antigo Testamento”, as citações a ressurreição e vida após a morte
são pouquíssimas, geralmente indiretas e sutis (Dt 32, 39; Is 26, 19; Dn 12, 2).
No Novo Testamento há muitas citações à ressurreição dos mortos, mas não sobre
a vida após a morte, no sentido de imortalidade da alma. As denominações
protestantes, por esse motivo, estão divididas quanto ao pós-morte. Alguns
pregam um estado de sono totalmente inconsciente para o ser humano até a
ressurreição, outros usam resquícios de versículos para defender a imortalidade
da alma. Os textos usados para defender a imortalidade no Novo Testamento são:
a parábola do rico e Lázaro (Lc 16, 19-31), uma visão de almas sob o altar (Ap
6, 9), e a fala controversa de Jesus ao ladrão da cruz, sobre estar “hoje” no
paraíso (Lc 23, 43). Os que defendem o sono inconsciente usam versículos
“pessimistas” de Eclesiastes e a suposta fórmula “corpo + espírito = alma”,
retirada de Gn 2,7. Mas esses versículos foram escritos com a intenção de
estabelecer doutrina a respeito da vida humana? Não podem ser relatos e
reflexões que não tinham a intenção de serem artigos de fé? Tanto o Judaísmo
quanto as autoridades cristãs chamam atenção para o perigo de se entender
errado o Eclesiastes, livro “filosófico” que sugere que tudo é vaidade e que
quase ficou de fora do cânon. Será que só existe uma forma de interpretar cada
texto?
Só existe
uma maneira, clara e inequívoca, de se entender a Bíblia?
Perceba, leitor, que tanto uma quanto outra
ramificação protestante citadas acima usam versículos da Bíblia geralmente sem
considerar gêneros textuais, contexto dos livros, crítica textual, tradição,
nada disso! Apenas usam os textos convictos de que cada versículo da Bíblia é
uma revelação Divina, livre de qualquer intervenção humana e de contradições,
ambiguidades, figuras de linguagem, gêneros textuais, lacunas etc.! Tratam a
Bíblia como se fosse o manual divino para todos os assuntos! Mas ela não é esse
manual! Se a Bíblia fosse o manual dado por Deus para todos os leigos do mundo,
contendo orientações para todas as áreas da vida, por que ela não é mais curta,
clara e sem nenhum problema de compreensão? Por que ela contém tanta história
de Israel, genealogias e versículos que deixam dúvidas?
Parece-me que o fato de existirem milhões de
igrejas protestantes espalhadas pelo mundo é por si só o argumento que mostra que a Bíblia não é suficientemente
clara e com apenas uma leitura possível! Por que as igrejas que defendem a divindade
de Jesus têm tantos bons argumentos dentro do Novo Testamento (Jo 1, 1-14; Fl 2,
5-6; 9-11 cp. Is 45, 22-23; Tt 2, 13; I Jo 5,20; II Co 4, 4 etc.) e os que
condenam a trindade como idolatria também têm (Jo 14, 28; 17, 3; 20, 17; I Co
8, 6; II Co 1, 3; Mt 24, 16; 27, 46 etc.)? A mesma coisa acontece com uma
infinidade de outras doutrinas, como abolição da Lei versus vigência da Lei ou de parte dela, morada futura no céu versus morada na terra (esse tema
insignificante é motivo de separação e gritos entre igrejas protestantes!), batismo
trinitariano versus batismo em nome
de Jesus, etc. No campo da escatologia (estudo do final dos tempos), as
diferenças vão para o infinito!
Se a Bíblia é clara o suficiente, por que isso
acontece, então? É claro, muitos que estão lendo este artigo e chegaram até
aqui estão agora dizendo que explicam os versículos “do outro lado” através de
uma lógica, de uma interpretação pessoal. Ora, se há interpretação pessoal,
lógica humana, logo há uma tradição,
um sistema organizacional dos
textos, uma religião! Não se está
seguindo só a Bíblia! Vamos parar com esse negócio de dizer que você não
segue religião e sim a Bíblia, por favor! Milhões de igrejas que discordam
muito de você afirmam a mesma coisa!
A Bíblia é como a constituição ou outro texto. Não
em seu valor, já que nenhum outro livro tem o valor que tem a Bíblia, mas sim
em sua interpretação. A Bíblia é um texto, e precisa ser interpretado. Por que
cada jurista tem, frequentemente, uma diferente visão a respeito da
interpretação de certa parte da constituição? Por que os políticos de posições
opostas citam a constituição para afirmar que a posição do outro é inaceitável?
Temos sete bilhões de pessoas no mundo. Quem garante que a interpretação de uma
delas é a correta, enquanto as demais estão erradas? Cada pessoa, interpretando
a Bíblia independentemente, vai chegar a conclusões diferentes! E é por isso
que surgem tantas igrejas todos os dias, cada uma dizendo que entendeu a Bíblia.
A interpretação da Bíblia feita por qualquer pessoa só pode produzir esse
efeito! Comprovaremos essas afirmações! Vamos ver na prática como opera a interpretação bíblica. Veja algumas
questões:
a)
A oração do “Pai-nosso” deve ser sempre feita ou
era um “modelo” alterável? – “Portanto, vós orareis assim: Pai nosso,
que estás nos céus, santificado seja o teu nome (...)” (Mt 6, 9).
b)
A prática do “lava-pés” deve acontecer nas igrejas?
Quando deve ser feita? Ou estas palavras são simbólicas? – “Ora, se eu, Senhor e Mestre, vos lavei os pés, vós deveis também lavar os pés uns aos outros. Porque eu vos
dei o exemplo, para que, como eu vos fiz, façais
vós também.” (Jo 13,14-15)
c)
Quando comemorar a “ceia do senhor”? Diariamente?
Semanalmente? Mensalmente? Anualmente? Há igrejas para cada uma dessas opções e
para outras! Qual está cumprindo o mandamento de Jesus?
d)
A mulher deve usar véu ou era apenas um costume
local da época? - “e toda mulher que ora
ou profetiza com a cabeça descoberta
desonra a sua cabeça; pois é como se a tivesse rapada. Se a mulher não cobre a cabeça, deve também
cortar o cabelo; se, porém, é vergonhoso para a mulher ter o cabelo cortado ou
rapado, ela deve cobrir a cabeça.”
(1 Co 11, 5-6)
A quantidade de polêmicas como essas acima é imensa!
É por isso que há tantas igrejas! Existem também textos que têm tradução muito difícil desde o
original. Veja um exemplo:
a)
“José é
um ramo frutífero, ramo frutífero junto à fonte; seus ramos correm sobre o
muro. Os flecheiros lhe deram amargura, e o flecharam e odiaram” (Gn 49, 22-23
- ACRF)
b)
“Filho
frutífero será José, filho frutífero junto à fonte; moças andaram sobre a
muralha para vê-lo. Os flecheiros o amarguraram, inimizaram-se com ele e o
torturaram” (Idem, Bíblia Hebraica)
c)
“José é o
rebento de uma planta frondosa, rebento de uma planta frondosa perto de uma
fonte; seus ramos transpõem o muro. Provocaram-no, brigaram com ele, os
arqueiros guerrearam contra ele” (idem, TEB).
É verdade que esse texto, aparentemente, não tem
nenhuma implicação teológica importante, mas o mesmo fenômeno ocorre envolvendo
textos “decisivos”, como o já citado Lc 23, 4, que em algumas versões traz “te
digo hoje: estarás comigo no paraíso” e em outras “te digo: hoje estarás comigo
no paraíso”. Ora, isso é importante para a doutrina da imortalidade ou
aniquilamento da alma! Outro caso é o primeiro capítulo de João, que, em várias
traduções, afirma que “o verbo era Deus”, e segundo outras, baseados na gramática
grega, afirma que “o verbo era divino” ou coisa parecida! Isso é importante
para a doutrina da trindade/unidade!
A essa altura do campeonato, muitos protestantes
apelarão para a afirmação de que “a Bíblia é compreendida através de
revelações”. Bem, existem dois problemas com essa afirmação: em primeiro lugar,
não se pode verificar se fulano teve ou não revelação! Como posso conferir se é
verdade que fulano teve revelação e eu não? Não é um argumento “justo”! É muito
fácil ganhar uma discussão bíblica com essa afirmação, que muito facilmente
vira uma desculpa que beira a brincadeira com Deus! O profeta Jeremias, falando
em nome de Deus, afirma:
“Enganoso
é o coração, mais do que todas as coisas, e perverso; quem o conhecerá?” (Jr
17, 9). Deus falou é que muito fácil que nos enganemos por nossos próprios
corações! Como podemos nos basear em supostas revelações, que se confundem com
as emoções que as pessoas têm, por já
acreditarem na ocorrência de revelações?
Em segundo lugar, pressupondo que a Bíblia é a
chave para tudo, onde a própria Bíblia
afirma que precisa das revelações para ser entendida? Vão citar I Co 2, 14;
Jó 32, 8; Lc 24, 45 e Sl 119, 18. Mas nenhum desses versículos fala que a
interpretação da Bíblia depende de revelação, de modo que “sem revelação, nada
feito” ⁸! A
própria interpretação é necessária para desprender essa doutrina desses
versículos! Se a interpretação só pode vir mediante revelação, por que estudar
a Bíblia? Por que os famosos bereanos analisavam se o ensinamento estava
direitinho de acordo com as escrituras e são chamados de nobres (At 17, 11)?
Além das reflexões acima, a respeito da diversidade
de interpretações e de traduções da Bíblia, de acordo com a crítica, baseada em
diversos manuscritos, muitos textos não estariam nos originais, por exemplo, do
Novo Testamento. Foram acrescentados
posteriormente, vários deles, por interesses religiosos. Apenas para citar alguns
exemplos:
a)
Mt 17, 21
b)
Mc 16, 8
c)
Jo 7, 53 – 8, 11
d)
I Jo 5, 7 (em parte)
Portanto, eu deixo para o leitor sincero as
seguintes perguntas: se devemos seguir a Bíblia, que Bíblia devemos seguir?
1-
Em que interpretação?
2-
Em que tradução?
3-
Seguindo ou não a crítica textual, arqueologia
etc.?
4-
Com ou sem os apócrifos (um monte de livros antigos
que ficaram de fora da Bíblia)? Que livros são os sagrados?
Se por um lado a falta de clareza e as ambiguidades
da Bíblia mostram que ela não pode ser totalmente entendida ao estilo
protestante, por outro, se tomamos a Bíblia como a medida para todas as coisas,
logo, quem deveria determinar o cânon da
Bíblia seria a própria Bíblia! Quem deveria dizer que a Bíblia é o
manualzinho também seria a própria Bíblia! Ora, quem determinou os livros que
compõem a Bíblia não foi a própria Bíblia, foi
algo de fora da Bíblia, seres humanos! Então, quem usa a Bíblia de 66
livros está testemunhando que uma tradição determinou os livros que são
apropriados e os que não são! A propósito, o que a Bíblia diz de si mesma? Ela
reclama inspiração divina? Diz que ela é o único livro portador de autoridade?
O que a
Bíblia diz de si mesma?
Não existe passagem nenhuma do
Antigo Testamento que reclame autoria ou inspiração divina para todo esse livro! Nenhuma! Ora, os
salmos estão assinados por seus autores: Salmo de David, salmo de Asaf
(exemplos: 72, 73, 74, 141, 143)! Como é possível que esses autores escrevam as
palavras de Deus e assinem em seus nomes? Também constatamos que os salmos
relatam os dramas pessoais de David, por exemplo. Existem salmos escritos em
momentos de dor, angústia, quando David estava fugindo de seus inimigos, outros
estão carregados de arrependimento, em momentos em que o rei foi castigado por seus
pecados (ver 51, 57 etc.). Ou seja: são poemas, escritos por um ser humano
cheio de talento para falar de seus sentimentos! Os provérbios são ditos sapienciais,
compostos e compilados por escritores (Pv 25, 1). As crônicas são... adivinhe!
Crônicas de reis, a história de Israel colocada em escrito, assim como qualquer
povo escrevia suas crônicas. O autor das Crônicas chega a ocultar, de
propósito, pecados de reis como Salomão, pecados sobre os quais lemos nos
livros dos Reis. Eclesiastes é composto por reflexões a respeito da vida
humana, feitas por uma pessoa que viveu diversas situações diferentes e agora
deseja contar o que tira de lição de tudo que observou (Ec 1, 12-14). Cântico
dos Cânticos é uma poesia romântica, sobre amor e sexo! Perceba como as pessoas
entendem tudo de modo errado!
Por outro lado, existe uma parcela
da Bíblia que, essa sim, afirma ter sido ordenada pelo próprio Deus. Essa
parcela compreende a Torá (Pentateuco), chamada “Lei do Senhor”, cuja afirmação
mais frequente é “E falou o Senhor a Moisés, dizendo...” (Ex 40, 1; Nm 20, 7
etc.), e boa parte dos livros dos profetas, que contém ditos do Criador (ex.: Jr
1, 4; Zc 1,3). Perceba: se toda a Bíblia fosse composta e ditada por Deus, por
que apenas uma parte dela afirma repetidamente, de modo muito bem assinalado,
que o autor de certos parágrafos é Deus? Em outras palavras, seria como se você
escrevesse uma carta de nove páginas para sua namorada e, a cada parágrafo, no
começo, colocasse um “sou eu, Fulano, quem digo o seguinte...”! Não faz o menor
sentido! Portanto, apenas parte (Lei e parte dos profetas) do Antigo Testamento
afirma ter autoria divina.
Só que vem o Novo Testamento e muda
bastante a situação. Versículos no Novo Testamento alegam que os salmos foram
escritos sob “inspiração do Espírito Santo” (Mc 12, 36; At 1, 16 etc.). Existe
também um versículo que, em algumas traduções afirma que “Toda a Escritura é
inspirada por Deus (...)” (II Tm 3,16 TEB). É claro que isso se referia ao
Antigo Testamento, porque o Novo não estava terminado ainda! Porém, como vimos
acima, nenhum lugar do Antigo Testamento afirma que todo o livro possui
inspiração divina. Muito pelo contrário: as passagens do Antigo Testamento que
dizem ter autoria Divina deixam isso muito claro, afirmando que Deus falou! Por
outro lado, o versículo da carta a Timóteo, citado acima, também é um caso de
tradição variável. Outras versões podem trazer “Toda a Escritura divinamente
inspirada é também útil (...)” (idem, SBB), o que não obrigatoriamente
significa que tudo o que está entre as capas da Bíblia é inspirado, e sim que
as coisas que aí estão e que são inspiradas são úteis para ensinar, repreender,
corrigir etc.!
Curiosamente, portanto, o
ensinamento que diz que a Bíblia inteira
foi ditada ou dada por Deus é
estranho à própria Bíblia! Deixo aqui mais uma reflexão: sabendo que vários
livros do chamado Antigo Testamento não têm pretensão de serem inspirados,
tendo gêneros textuais bem definidos (poesia, história, provérbio etc.), o
mesmo não poderia ser dito sobre as cartas do Novo Testamento? Alguns textos do
Novo Testamento citam até mesmo coisas como conselhos do autor em relação à
saúde do destinatário (I Tm 5, 23) e ordens para que o destinatário traga
livros e roupas para o remetente (II Tm 4, 13)!
Há também uma questão impressionante
que, surpreendentemente passa despercebida por muitos leitores que acham que a
Bíblia é o único livro com autoridade, que torcem a cara se você citar outra
fonte e pedem “base bíblica” para tudo: a própria Bíblia e o Novo Testamento
citam livros de fora de seu conteúdo! Veja com seus próprios olhos estes
versículos que citam:
a) Livro das guerras do Senhor (Nm
21,14-15)
b) Livro do justo (Js 10,12-13 e II Sm
1,18)
c) Vários provérbios e cânticos
exteriores de Salomão (1Rs 4,32-33)
d) Livro dos Atos de Salomão (1Rs
11,41)
e) Epístola de Paulo aos coríntios,
prévia a I Co (I Co 5, 9-10)
f) Carta de Paulo aos Laodicenses (Cl
4,15-16)
g) A profecia de Enoc e a disputa
pelo corpo de Moisés (Jd 1, 9. 14-15)
Ora, a própria Bíblia, que muitos dizem ser a única
autoridade, cita como autoridades outros livros, livros estranhos à Bíblia!
Isso não significa que a Bíblia é apenas parte de uma tradição literária muito
maior, como afirmam os judeus e católicos? Como se pode dizer ou se comportar
como se a Bíblia fosse o único manualzinho para todas as coisas nesta vida,
unica e objetivamente a Bíblia, quando a própria Bíblia e o Novo Testamento
citam coisas de fora da Bíblia?
Os
protestantes realmente “seguem só a Bíblia”?
Perguntar não ofende: se os
protestantes seguem apenas a Bíblia, por que têm costumes e regras estranhos às
Escrituras? Exemplos: Natal, veneração ao domingo, roupas obrigatórias,
proibição de música não-religiosa, álcool, festas etc., dízimos (que são do
Antigo Testamento, que eles afirmam ter sido abolido; além disso, o dízimo era
outra coisa!) e muitos outros costumes. Proibir com advertências de punições o
que a Escritura não proíbe significa tirar do cristão sua liberdade, em termos
luteranos! Ora, por que têm costumes? Pensei que a Bíblia era a única coisa a ser seguida! Por que
dizem que a questão do véu, trazida por Paulo em Coríntios, é questão de
cultura local da época e não aplicam a mesma lógica a outros assuntos? A
resposta é simples: os protestantes não
seguem unicamente a Bíblia! São uma religião
como qualquer outra. E existem milhões de igrejas protestantes com crenças
diferentes entre si, muito mais do que qualquer outra religião do mundo, exata
e ironicamente porque essa religião diz seguir apenas a Bíblia! Cada uma das centenas
de milhares de igrejas segue “apenas a Bíblia” a seu modo!
Eu peço perdão se tudo isso dito
acima soou antiprotestante, porque, definitivamente, não foi minha intenção
fazer juízo de valor entre religiões. Não estou aqui propondo uma escala de
religiões “boas” e “ruins”. Não é isso! Minha proposta é esclarecer que essa
afirmação de que existem igrejas que “só seguem a Bíblia” é uma falácia!
Desculpe, mas é obviamente uma falácia! Por outro lado, posso respeitar totalmente,
sem nenhuma reserva, as igrejas protestantes e evangélicas que não demonizam a palavra “religião”, assumem que são uma religião, abraçam
as demais religiões, ensinam a civilidade e o respeito à pluralidade! Essas instituições merecem toda a nossa
consideração!
Constatações
- · Só existe uma das grandes religiões que afirma seguir somente a Bíblia: a religião protestante/evangélica, em todas as suas ramificações;
- · As religiões judaica e católica afirmam que possuem tradições milenares, além do Antigo e Novo Testamentos. A interpretação desses livros precisa ser feita, para elas, de acordo com essas tradições;
- · Não faz o menor sentido tentar convencer, portanto, um católico usando a interpretação protestante da Bíblia. O católico instruído na doutrina não crê que precisa ler a Bíblia entendendo-a por si só, e sim através da Igreja;
- · Existem enormes polêmicas envolvendo a interpretação, tradução e composição da Bíblia;
- · A Bíblia contém lacunas (“falta dizer uma coisa” para preencher alguns textos), ambiguidades (textos que se prestam a mais de uma interpretação) e controvérsias quanto à tradução;
- · O argumento de que “só se entende a Bíblia por revelações” não é verificável na prática e não tem base bíblica;
- · Pelo fato de a Bíblia conter lacunas, “crer só na Bíblia” não existe; Você precisa confiar, no mínimo, também em suas habilidades para interpretá-la;
- · A Bíblia não afirma que ela é a única coisa a ser seguida / manual para tudo;
- · A Bíblia não afirma que o autor da Bíblia inteira é Deus;
- · A Bíblia cita textos e instituições de fora da Bíblia como autoridades;
- · A Bíblia não diz que ela possui 66 livros e quais são eles. Quem estabeleceu o que é a Bíblia foram seres humanos;
- · As pessoas que dizem “seguir só a Bíblia”, na verdade seguem apenas uma interpretação da Bíblia, uma versão do texto etc.;
- · Os protestantes/evangélicos possuem costumes estranhos ao texto bíblico, assim como as outras religiões;
- · Os protestantes/evangélicos possuem uma religião, por mais que rejeitem o termo;
- · A quantidade imensa de igrejas protestantes/evangélicas que surgem a cada dia é causada pela livre interpretação individual da Bíblia;
- · Existem várias religiões “bíblicas” porque existem várias formas de se interpretar a Bíblia. Essa diversidade não deve ser combatida, e sim respeitada;
- · Todas as religiões possuem lógica e explicações. Todas devem ser respeitadas. No entanto, é chegado o momento de os protestantes e evangélicos admitirem que não são “a religião que segue só a Bíblia”.
Conclusão
Este artigo não foi escrito “para afirmar que os
protestantes estão errados”. Esse tipo de combate religioso é perda de tempo. O
fato é que o fanatismo religioso é, infelizmente, uma característica marcante
de várias denominações religiosas. Quando um religioso afirma que “não tem
religião”, “não segue doutrinas de homens”, “segue apenas a palavra de Deus”,
sabe o que ele está dizendo? Que todas as pessoas que seguem outras religiões
são incompetentes para ler a mensagem de Deus, que seria clara e sem nenhum
tipo de confusão! Está dizendo que as pessoas não sabem ler! Não sabem
interpretar textos! É claro que os católicos leem a Bíblia! É claro que os
judeus leem o “Antigo Testamento”. O motivo pelo qual essas pessoas não aceitam
o mesmo sistema de crenças que o cristianismo protestante é: católicos e judeus
não afirmam que a Bíblia deve ser “interpretada pela própria Bíblia” ou que ela
é “o manual único de fé e prática”. As religiões, por mais que se baseiem em
livros, têm vida própria. Os livros são mortos, o que as pessoas fazem deles é
que dá origem a práticas vivas. Cada religião interpreta os textos de modo
diferente. Inclusive as pessoas que acreditam em uma tradição fora da Bíblia
muitas vezes usam de habilidade argumentativa para mostrar como supostos textos
da Bíblia provam a existência das tradições. Todas as religiões podem ter bons
argumentos e podem vencer debates, basta apenas que tenham porta-vozes hábeis o
suficiente! Que cesse o orgulho de quem pretensamente tem sabedoria porque
segue a Bíblia! O que existe são religiões. E não é ruim que uma coisa seja
apenas isso: uma religião! Isso não é uma coisa negativa! As religiões podem
fazer coisas ruins ou boas, de acordo com as pessoas e os valores que as
orientam.
O que se propõe com as constatações dessa discussão
não é uma tal união “hippie” de todas as religiões, nem uma rajada de ódio ateu
contra todas elas. Se alguém interpretou de alguma dessas maneiras, entendeu tudo errado.
Ninguém precisa sair de sua casa e dizer pra seu amigo católico que ele está
certo em sua religião! As religiões têm grandes diferenças entre si, e isso
nunca vai acabar. Os debates nunca vão acabar. Ninguém deve ver uma questão de
ódio em simplesmente discordarem as pessoas umas das outras. Não há ódio algum
em discordar! Discordamos e somos diferentes o tempo todo! O que deve haver não
é a fusão dos opostos, é a convivência, a tolerância! Convivência é você poder
até mesmo discordar do seu vizinho, às vezes considerá-lo idólatra, ter até
certas restrições em relação a comer com ele ou coisa parecida, mas não fazer
cara feia para ele. Não levar para o
público sua questão de consciência. No público, respeito e cooperação. No
privado, as pessoas são livres para terem sistemas de pensamento diferentes!
Não se deve misturar discordância com ódio ou perseguição. Mas é óbvio que
quando você diz que você (que é religioso) não é de religião e o seu vizinho é,
você “já ganhou o debate”! Você não está vendo nem mesmo a remota possibilidade
de seu vizinho saber de alguma coisa! O tempo talvez mostre que você estava
errado, como mostrou a muitos. Apenas comece a questionar e ter opiniões próprias, e você verá.
_______________________________
¹ Fonte: Creating the Canon, disponível em http://www.myjewishlearning.com/article/creating-the-canon/#
Acesso em
07 de junho de 2016
² O sétimo dos treze princípios da fé
judaica afirma que Moisés é o “pai” de todos os profetas anteriores e
posteriores, sendo, portanto, muito mais importante. A lei judaica diz que
qualquer profeta, mesmo fazendo milagres, que tentar desfazer a Torá, não deve
ser ouvido (Michnê Torá, Fundamentos da Torá 8, 7). Maimônides também opinou
que durante a Era Messiânica, todos os livros dos profetas e escritos serão anulados,
com a exceção do livro de Ester. A Torá Escrita e também a Oral, no entanto
jamais serão anuladas (Leis de Meguilá e Hanucá 2, 18).
³ Oitavo princípio do judaísmo: A Torá
como vinda dos Céus.
⁴ BALTA, Paul – Islã. Tradução William Lagos – Porto
Alegre, L&PM, 2010 p. 16-17
⁵ Idem, p. 131, vocábulo
“Charia”.
⁶ O Catecismo da Igreja
Católica pode ser visualizado em português (e em diversos outros idiomas) no
portal do Vaticano, através do endereço http://www.vatican.va/archive/cathechism_po/index_new/prima-pagina-cic_po.html
Acesso em
14 de junho de 2016
⁷ LUTERO,
Martinho. O cativeiro babilônico da Igreja.São Paulo: Martin Claret, 2006. P.
111
⁸ Jó 32, 8 – Essa é a opinião de Eliú
(v.6), e diz que o homem tem entendimento porque possui espírito;
Sl 119,
18 – Essa é uma oração do salmista pedindo que ele se torne mais sensível a
perceber as maravilhas da Lei ou das instruções de Deus. Isso implica que Deus
pode nos dar entendimento, mas não que se entende o texto por revelações.
Refere-se à Torá, não ao Novo Testamento;
Lc 24, 45
– Aqui um homem (não Deus!) explica textos das escrituras para que outros
entendam. Qualquer pessoa pode “abrir o entendimento” de outra!
I Co 2,
14 – O texto não se refere à Bíblia, e sim à pregação dos apóstolos.
quero ser igual a você com tanta sabedoria.
ResponderExcluirPerfeito
ResponderExcluirEste comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirNas 7 cartas escritas para as 7 igrejas,no livro de Apocalipse cita os erros de cada uma e suas qualidades mas duas coisas foi pedido por Deus arrependimento e guardar sua palavra,não nega-la.A Bíblia é uma questão de crer ou não crer.Dela tiramos exemplos de fé,de amor,comunhão com Deus,instruções de sabedoria.Enfim cada um tem o direito de ver a bíblia como quiser enxerga-la,eu a vejo como a palavra de Deus,se eu não acreditasse na Bíblia não acreditaria em um plano de salvação,nem que existi Deus e nem muito menos a Virgem- Maria,Jesus,Apóstolos por que foi através deste livro que soube disso tudo.Eu acredito na palavra de Deus e creio que devo guarda-la no meu coração e não nega-la.
ResponderExcluirEm toda a minha vida,não tinha lido um texto tão bem explicado como esse parabéns!pelo seu conhecimento e em dividir com o público.
ResponderExcluirÀ única religião verdadeira é um povo separado das Nações: conforme atos 15:14.
ResponderExcluirUm povo constituído primariamente de 144 mil, APOCALIPSE 14:1-5.
Um povo que depois se juntaria a uma grande multidão João 10:16; APOCALIPSE 7:9. E no Cotidiano, não se envolve com os crimes do diabo: não se envolve com política, Guerras, idolatria e acima de tudo, prega o Reino de Deus como solução para os problemas da terra e à humanidade.
Às religiões se uniram para guerrear contra o povo de Deus ou à religião verdadeira.
ResponderExcluirElas têm raiva pela à exposição que ela faz de tais organizações, o que a religião verdadeira não faz às religiões falsas fazem tudo é um pouco!
Para aquele que desconfie dos que escreveu a bíblia deixarei uma passagem.
ResponderExcluir2 Pedro (1:20,21) 20 Sabendo primeiramente isto: que nenhuma profecia da Escritura é de particular interpretação;
21 Porque a profecia nunca foi produzida por vontade de homem algum, mais por homens santos de Deus falaram inspirados pelo Espírito Santo.
Apocalipse (22: 18 ao 21)
Porque eu testifico a toda aquele que ouvir as palavras da profecia deste livro que, se alguém lhes acrescentar alguma coisa, Deus fará vir sobre ele as ptagas que estão escritas neste livro;
E, se alguém tirar quaisquer palavras do livro desta profecia, Deus tirará a sua parte da árvore da vida e da Cidade Santa, que estão escritas neste livro.
Aquele que testificar estas diz: Certamente, cedo venho. AMÉM! Ora, vem, Senhor Jesus!
A graça de nosso Jessus Cristo seja com todos vós. AMÉM!
O problema é que as pessoas não querem seguir as leis de Deus, e acabam achando que tudo que está escrito na bíblia foi ideia dos seres humanos.
ResponderExcluirconcordo em genero, mumero e degrau
ResponderExcluirGostei particularmente dos estudos sobre as religiões, clique aqui e me ajudou muito.
ResponderExcluirVerdade mesmo muito boa explicação.
ResponderExcluirConfira nossa postagem em
Quanto é um galão de água