Carta
aberta a quem acabou de trocar a igreja fanática pelo judaísmo
Primeiramente,
meus cumprimentos! Você acabou de deixar uma situação de opressão, barulho e
limitação do seu potencial para estudar uma religião que historicamente tem
sido o berço de pessoas que deram contribuição para a ciência (Maimônides, Ibn
Ezra, Os sábios do Talmud, como testemunha o Sêfer haCuzari), filosofia
(Maimônides) e influenciaram as duas maiores religiões do mundo. Trata-se de um
caminho que (pelo menos relativamente!) não despreza a ciência, a modernidade e
a sociedade que eu gosto de chamar de “normal”, o que certamente não é o caso
de muitas igrejas pentecostais no Brasil.
Dito
isso, quero deixar uma coisa clara aqui: você
certamente tem várias concepções erradas sobre o que é o judaísmo e como ele
pensa, você apenas está engatinhando
em judaísmo e não pode falar em nome dessa religião e você está cheio de dúvidas. Ainda que você faça anos que esteja
estudando e lendo sobre o judaísmo, vamos admitir: seu comportamento, escrúpulos
morais, vontade de ter um templo que frequentar... são resquícios evangélicos
que NÃO VÃO DESAPARECER em uma semana só porque você saiu da igreja! Isso é totalmente normal. Não é o fim do
mundo. A boa notícia é: eu, que escrevo este texto, passei por uma situação
semelhante à sua, há mais de uma década, desde então estudo judaísmo e quero
compartilhar meus pensamentos com você, por meio das próximas linhas – espero
que sejam breves.
Sem
rodeios, estes são alguns tópicos sobre os quais eu quero dialogar com você.
Leia pacientemente e considere o que eu quero dizer:
1- O judaísmo não é “universalista”!
– Muitos interessados no judaísmo que vêm de igrejas cometem o seguinte erro:
“vou ensinar a Torá para quem eu puder, passar a palavra da Torá pra meus
vizinhos, ensinar a salvação da Lei”. ERRADO! Isso não é judaísmo! Sem você
perceber, você está transferindo o pensamento CRISTÃO para sua nova identidade.
No cristianismo, só há um padrão para todas as raças, povos e nações: aceitar
Jesus. Você está trocando a palavra “Jesus” por “Lei”! O judaísmo não espera
que o caminhoneiro que está viajando o tempo todo ou a senhora que trabalha
como merendeira na escola guardem o
shabat e cumpram os rituais judaicos, se não forem judeus! Para o judaísmo, Deus tem dois padrões: um é para o povo
judeu e quem escolher se juntar a ele (613 mitzvôt
+ tradição judaica) e uma moralidade básica para todos os outros povos. Em
nenhum lugar da Bíblia está escrito que Jonas chegou fazendo proselitismo
judaico para os ninivitas! Ele apenas disse: “vocês não estão sendo éticos”!
Então não confunda as coisas! O judaísmo não acha que o mundo está acabando e
você precisa levar a “mensagem da Lei” pra “salvar” (termo não judaico, no
sentido espiritual) quem quer e quem não quer!
2- O judaísmo não é a “verdade
científica” a ser provada a todas as pessoas – Existem
indivíduos que praticam o esporte de pular de galho em galho em busca de uma
“verdade” que possam provar para todas as pessoas. A verdade inequívoca,
comprovada “cientificamente”. Se você está procurando a luz no final da estrada
de tijolos amarelos que leva ao arco-íris, sinto muito, mas POUPE TEMPO E REVELE-SE
ATEU HOJE MESMO! Como é que você vai provar de forma inequívoca a todo mundo
que a Torá foi historicamente dada no Sinai, com a tradição judaica e todos os
aspectos do judaísmo? É necessário sim ter fé! Não sejamos hipócritas. O
judaísmo não deixa de ser uma escolha! Claro que achamos que ele seja a escolha
mais acertada em termos de religião. Mas isso não significa que o que me
convence convencerá todos!
3-
O
judaísmo e o Estado de Israel – Não passe vergonha!
Está cheio de “recém-judeus” por aí confundindo tudo e achando que é parte da
religião judaica ostentar hino, bandeira de Israel, notícias de Israel o tempo
todo: o tal do “amor por Israel”. Essas são práticas de cristãos que querem
converter Israel por motivos “proféticos”, do ponto de vista deles. Israel, o
país da bandeira azul e branca, é só um país! É um país que tem a ver com a
religião judaica até certo ponto, mas não é uma teocracia, não é um país que
todos os judeus tenham que apoiar ou ser fãs... NÃO! Inclusive Israel tem
aspectos seculares que muitas vezes são problemáticos para os judeus
observantes, e existem milhares de judeus ANTISSIONISTAS, que são contra o país
de Israel com argumentos religiosos
judaicos! Você não precisa “pagar pau” pra Israel. Às vezes soa ridículo um
brasileiro se importar tanto com outro país.
4- Povo e religião
– Não confunda! Quando se diz que personalidades tal e tal eram ou são judeus,
isso não quer dizer que eles tinham ou têm nada a ver com a religião judaica, a
Torá. É possível que alguém nessa categoria tenha sido ou seja CONTRA a Torá!
Nunca seja fã de “judeus do prêmio nobel” só por serem judeus. Isso também soa
muito ridículo!
5- O judaísmo não é único e nem todas
as facções judaicas são construtivas – Cuidado ao falar em
nome de O JUDAÍSMO. Nunca existiu UM cristianismo, UM islã, UM judaísmo.
Existem vários judaísmos. Várias correntes, várias tendências. E isso não se
resume a “ortodoxos, conservadores e reformistas”. Longe disso! Mesmo dentro da
ortodoxia judaica SEMPRE HOUVE várias tendências. Existem versões muito
místicas do judaísmo— os de roupa preta que falam bastante em temas
cabalísticos—, mas um dos mestres mais importantes para o judaísmo, Maimônides,
costumava criticar gravemente as tendências místicas de sua época! Não ache que
pra ser judeu tem que crer em reencarnação, tzadic
milagreiro etc! Outra coisa: não
idolatre o judaísmo! Tem gente EM IGREJAS EVANGÉLICAS que quando vai falar
em judeu ou judaísmo só falta escovar os dentes antes e depois de pronunciar
tão santas palavras! Não sei como não escrevem “jud-us”! Quer saber de uma
coisa? Eu poderia postar aqui páginas e páginas de imagens, vídeos e notícias
de judeus ultraortodoxos praticando atos graves de fanatismo (contra os
cristãos que os idolatram!), dizendo coisas pesadas ou metidos em coisas
criminosas... ações que deixariam sua igreja anterior parecendo o berço da
tolerância e positividade! Cuidado com o (tipo de) judaísmo que você estuda!
6-
Você não necessariamente é aceito como judeu
pelos judeus praticantes- Pense duas vezes antes de adicionar
um rabino de preto no facebook e chegar teclando “shalon, rabi! shanah tovah! eu sou um yehudins que ama Ysrael”...
Não seja ingênuo! Do ponto de vista da norma judaica ortodoxa, não interessa o
que você leu sobre “sobrenomes judaicos”, “não sei quê de DNA”, “costumes
judaicos na minha família”... Pouca gente (se é que tem) no mundo judaico
observante considera alguém judeu só porque se diz judeu. Para a norma judaica,
certamente você precisa de um árduo processo de conversão. Infelizmente não há
garantia nem mesmode que você vá ser BEM TRATADO por todos os judeus natos!
7- Confusões conceituais: rabino,
sinagoga etc. – Acontece às vezes de o sujeito ter
frequentado a igreja, com um pastor e o dízimo, e achar que agora vai só mudar
os nomes: “sinagoga, rabino e tzedacá”.
Não é assim! OS CONCEITOS judaicos são diferentes. Sinagoga é uma casa de
oração, que só é relevante, de acordo com a halakhá,
para dez ou mais judeus adultos homens (minián).
Você precisa aprender a NÃO PRECISAR de
um templo. A maioria absoluta dos costumes e mitzvôt judaicos são perfeitamente observáveis NO SEU LAR, com
algumas pessoas, de forma tão válida para o judaísmo como se você estivesse num
templo maravilhoso. Não se afobe: o judaísmo não começa com “alugar o prédio
para a sinagoga”. Isso é cristianismo evangélico pentecostal de interior, não
judaísmo! Imagine que ridículo seria alguém querer começar uma mesquita, um
templo islâmico, sem saber rezar e ensinar o islam! Ridículo! Por que com o
judaísmo seria diferente? Rabino não é “líder religioso”, no mesmo sentido em
que um pastor é líder religioso. Um rabino não é necessário para a comunidade
judaica! Rabino não é pastor judeu. Na verdade, ele é um consultor de leis
judaicas— alguém que estudou as leis do judaísmo como estão em livros como
Shulchan arukh— e que pode auxiliar a comunidade na vida judaica. No judaísmo,
a única coisa que você precisa pra fazer uma ação religiosa é SABER FAZER a
ação religiosa! Perceba que você está livre de pessoas que pegavam no seu pé.
Por outro lado, isso implica uma maior responsabilidade: você precisa controlar/liderar
você mesmo!
8- Sola scriptura não é judaísmo
– Ninguém entende de judaísmo apenas lendo a Bíblia. A Bíblia não é o único
livro do judaísmo. E ACIMA DISSO, no judaísmo, a Bíblia judaica é lida DENTRO
DA TRADIÇÃO JUDAICA. Não é você que interpreta a Torá e “acha” que certa
prática deve ser feita assim ou assado. Isso é protestantismo, não judaísmo! No
judaísmo você tem uma tradição judaica! Isso separa os meninos dos homens,
porque a essa altura, alguns leitores já podem estar revoltados: TRADIÇÕES DE
HOOOOMENS!!!
9-
Jesus
e o Novo Testamento – Por favor, não engane a si mesmo
nem aos outros. Jesus e o NT não são partes do continuum do judaísmo tradicional. Judaísmo tradicional é Torá –
Talmud – Rabinos medievais – Etc. Não existe lugar para Jesus e o NT no
judaísmo tradicional. Os rabinos do
judaísmo criticaram Jesus e o NT. Se você quer se dizer judeu e aceitar
Jesus e o NT como parte da sua experiência religiosa, SEJA HOMEM, SEJA HONESTO
e diga, pelo menos: “eu sou um judeu DIFERENTE, MINORITÁRIO, que aceito essa
doutrina não tradicional judaica”. Por outro lado, ATENÇÃO! Isso não significa
que você tem que odiar Jesus, chamá-lo de ídolo, zombar do cristianismo e
coisas assim! Não seja sem noção! Jesus faz parte do repertório EMOCIONAL das
pessoas! Às vezes, até dizer “não creio em Jesus” pode ser muito mal entendido
ou comprometedor, dependendo de com quem você está falando. Você não precisa sair
dizendo isso. Existem formas de você se expressar! Sugestão: “eu aceito apenas
o Antigo Testamento”. Pronto! Você não magoou ninguém! Além disso, o que Jesus
representa de ameaçador ou negativo pra que você viva criticando-o? Sendo um
zombador de Jesus e do cristianismo, você pode trazer má fama ao judaísmo!
Percamos esse péssimo hábito de estar brigando sobre religião! O fato de nós
não seguirmos o NT não tem nada a ver com evitar o contato, amizade, diálogo,
respeito ou até mesmo cooperação, até certos limites, com cristãos e
messiânicos.
10-
Devo começar lendo o Talmud? – Se
você for começar pelo Talmud, não vai terminar nunca. O Talmud não está
acessível para a maioria de nós. É muito ingênuo querer estudar o Talmud logo
de cara. Estatisticamente poucos judeus estudam o Talmud sistematicamente. Para
o judeu observante, o que mais interessa do Talmud para sua vida diária são as leis. Essas leis não estão organizadas
por categorias no Talmud, estão muito praticamente ordenadas em livros como
Mishnê Torá e Shulchan Arukh, muito mais acessíveis! Sugestão de livros: comece
lendo a Torá numa versão judaica com comentários, depois vá para o Sêfer
hamitzvôt de Maimônides e leia sem moderação livros como “O judaísmo vivo”, por
Michael Asheri ou “O livro judaico dos porquês”, do rabino Alfred Kolatch.
11- Falar em Deus o tempo todo e sua
relação com a sociedade – Decidi concluir essa série de conselhos
com a dica mais importante, na minha opinião. Na sua religião anterior, você
era colocado contra a parede com uma série de regras santarronas destinadas a
manter você longe do “mundo lá fora”. Música, bebida alcoólica, amizade com as
pessoas “normais”, tudo isso eram e SÃO, sejamos francos, grandes tabus para
nós. Saiba: o judaísmo não acredita em santarronice. Você não precisa viver uma
tal de “vida de louvor e adoração”, só falando em Deus o tempo todo, morrendo
de medo do fim do mundo e não se relacionando com as pessoas. RELAXE SUA MENTE!
Você não precisa se vestir destacado das outras pessoas no calor de 40º nem
falar “amém”, “amado irmão” e outros termos gospel a cada cinco palavras! A sua
vida AUTOMÁTICA, DURA, EXAGERADA, ESTÁ EM PROCESSO DE ACABAR! Você vai
revolucionar (com anos e anos) positivamente sua cabeça, ser mais leve e
sociável! Atenção: como eu falei acima, você também precisa tomar cuidado para
“equalizar” suas interações e manter sua moralidade nos valores de Deus. Não se
trata de negar este mundo, e sim de sermos éticos dentro dele! Despeço-me com
as seguintes palavras, do grande rabino ortodoxo Adin Steinsaltz (2006, p. 79):
(...)
precisamos aprender a sorrir. Não é aconselhável fazer tudo com o rosto fechado
e temeroso. Algumas coisas podem ser tomadas com mais leveza, e em muitos
contextos, a alegria é permissível. Não é simplesmente uma questão de evitar a
tristeza, que os sábios consideram o pior dos pecados, mas de manter um senso
de proporção, poupando a sua seriedade e determinação grave para as situações
que precisam disso. O judaísmo apresenta um desafio espiritual especialmente
difícil, pois ele nos pede que vivamos uma vida de santidade, não em reclusão
monástica, mas aqui fora, no mundo. É um desafio que exige equilíbrio e senso
de humor.
Referências
STEISALTZ,
Adin, Teshuvá, um guia para o judeu recém-praticante – Maayanot - 2006
Otimo texto muito obrigado, e ele veio em boa hora para mim, que a pouco tempo sai de uma igreja evangélica, meus parentes proximos ( Pai, mãe e irmãs ainda são.) e esse texto me ensinou que eles não tem nada haver com minhas novas escolhas e um passo para a mudança :)
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